




Nomadland: o fim do sonho americano
Um dos principais atrativos de Nomadland, livro da jornalista americana Jessica Bruder, recém-lançado no Brasil pela Rocco, é conseguir mostrar um outro lado dos Estados Unidos. Para fazer o livro-reportagem que inspirou o filme de Chloé Zhao, vencedor do Oscar 2021, Jessica acompanhou por três anos os novos nômades americanos, que deixaram para trás as cidades e a vida convencional para viver na estrada e ganhar dinheiro em subempregos.
É o outro lado do famoso “sonho americano” (resumido no lema american way of life). Bem mais sombrio e duro, é verdade. “Pessoas que nunca imaginaram ser nômades botam o pé na estrada. Elas desistiram das casas e apartamentos tradicionais para viver no que alguns chamam de ‘casa com volante — Vans, RVs (motorhome ou veículos recreativos) de segunda mão, ônibus escolares, picapes adaptadas, trailers e simples sedãs”, escreve Jessica logo no início do livro. “Elas os dirigem para se afastar das decisões impossíveis que enfrenta o que antes costumava ser a classe média.”
Decisões como financiar um carro ou fazer um tratamento de saúde, comprar roupas para um rigoroso inverno ou gasolina para ir e voltar do trabalho… Logo de cara fica claro que cair na estrada para essas pessoas não é um ideal de liberdade. Elas foram empurradas para lá pelo “sistema”.

Personagens
O que mais impressiona no livro não são tanto os números que a escritora traz à tona (muito interessantes), sobre previdência social e custo de vida nas grandes cidades americanas, mas os personagens retratados na obra. São eles que guiam a narrativa.
Jessica Bruder segue as rotas mais usadas dos que trabalham em empregos temporários e conhece gente de todo tipo: um ex-professor, um executivo do McDonald’s, um ministro de igreja, um policial aposentado e veteranos de guerra, entre muitos outros.
Em um veículo de segunda mão que Bruder apelida de “Van Halen”, a jornalista pega a estrada para ver de perto e viver tal como os objetos do seu estudo, transformados em personagens no filme de Chloé Zhao.
Linda May
E assim Jessica retrata, quase sem filtros, sua principal personagem, chamada Linda May. Avó e aposentada, ela recebe 524 dólares por mês da previdência americana. Vivendo com a família em um apartamento minúsculo, em que dormia no sofá perto da porta, onde atrapalhava a passagem dos outros habitantes, Linda decidiu pegar a estrada e vagar pelos Estados Unidos em busca de emprego e um pouco de liberdade.
Jessica vai construindo sua narrativa por meio dos detalhes que o filme de Chloé não conseguiu mostrar, dadas, claro, a diferença de linguagens das duas obras. No livro, é possível saber como as pessoas compram e adaptam suas casas sobre rodas. Isso faz parte de uma cultura nos Estados Unidos, que mobiliza uma série de profissionais — e gera emprego. Outro detalhe interessante é como esses nômades criaram uma espécie de irmandade entre eles, uns ajudando os outros, o que fica bastante evidente também no filme.

Bob Wells é outro personagem que ganha destaque. Ele representa um lado mais triste do livro. Amargurado, declara: “Dissemos a nós mesmos: Não vamos mais fazer esse jogo”. Bob é um dos milhares de americanos afetados pela crise imobiliária e bancária de 2008. Essa é uma das razões mais evidentes que levaram os nômades da terceira idade a ocupar as estradas.
Eles pulam de um subemprego a outro atrás de uma renda que lhes dê um pouco mais de dignidade. Também chamados de workcampers, esses idosos aceitam qualquer tipo de trabalho: de cuidadores de cães a lavadores de legumes e frutas. São peças essenciais da precarização do trabalho dos Estados Unidos.
E para recrutar essa mão de obra, há diversos “programas” que acolhem os trabalhadores. Um deles é a CamperForce, da Amazon. “Jeff Bezos previu que, até 2020, um em cada quatro workcampers nos EUA terá trabalhado na Amazon”, diz um texto de apresentação para novos contratados da gigante varejista. E as condições de trabalho são muito ruins. Há grande número de casos de idosos maltratados e feridos no trabalho. Para se ter uma ideia, a Amazon distribui até mesmo analgésicos para esses trabalhadores.
Para deixar seu trabalho ainda mais verossímil, Jessica trabalhou na própria Amazon e em uma indústria de processamento de beterrabas.

Filme
Na adaptação para o cinema, a personagem principal é a ficcional Fern (em papel claramente inspirado por Linda May), que cai na estrada após perder o emprego. Sua cidade desapareceu do mapa com a desativação de uma grande fábrica. Interpretada por Frances McDormand, que ganhou o Oscar de melhor atriz em papel principal, Fern é acompanhada de vários outros nômades, muitos deles reais que interpretam a si mesmos no longa.
Às histórias de desalento geradas pelo capitalismo, na nação mais capitalista do mundo, Chloé Zhao adiciona seu talento para filmar cenários que tocam pela beleza e por certo toque poético. As imagens emocionam tanto quanto os relatos do livro.
O melhor de Nomadland: livro e filme
• A precarização do trabalho na maior economia do mundo.
• Um sistema falho de previdência social.
• Um sonho de liberdade no último terço da vida.
• No filme, o destaque é a atuação de Frances McDormand, que contracena com personagens reais do livro.
• A investigação de Jessica Bruder é minuciosa, e mostra detalhes interessantes sobre o que comem e como dormem os personagens do livro.
• A cineasta Chloé Zhao soube transmitir em imagens o desalento e senso de coletividade dos nômades americanos.
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Nomadland
Jessica Bruder
Trad.: Ryta Vinagre
Rocco
304 págs.